sexta-feira, 16 de abril de 2010

Soneto cativo


Se é sem dúvida Amor esta explosão de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha das histórias do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a covardia de buscar nos lençóis
a mais sombria razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo e que por ti, tão cego, surdo e sujo
tenho vivido eternamente preso!


David Mourão-Ferreira
(Poema com imagem extraído da net)

1 comentário:

  1. Nelinha, escolheste três lindos poemas sobre a temática recorrente do texto lírico: O AMOR. Poemas de épocas diferentes, mas que, como verificas, são intertextuais no que se refere ao tema. Gosto fundamentalmente do do David Mourão Ferreira... é forte, avassalador e verdadeiramente definidor do que somos capazes quando amamos. E, às vezes, amamos de mais e não conseguimos romper as ténues amarras que ainda nos ligam ao objecto do nosso amor. Às vezes, o que existe já não é mais nada senão a nostalgia dos momentos de paixão que então vivemos. Mas insistimos... e quando estamos sozinhos, a decisão de enfrentar a ruptura ainda se torna mais difícil. É que, diz-me a experiência, nada, mas mesmo nada é pior do que a solidão. A companhia de alguém com quem possamos partilhar as nossas vivências -boas ou más - é absolutamente necessária à nossa estabilidade emocional.
    Feito este "desvio" ao tema central do comentário (os poemas), vou deixar-te aqui um dos textos mais bonitos do grande poeta Eugénio de Andrade. Sempre que o ouço me arrepio... ciente de que, tal como ele diz, todas as relações atingem o desgaste. E o primeiro "aviso" desse cansaço é a incapacidade de comunicação.
    Poema
    Eugénio de Andrade

    Adeus

    Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
    e o que nos ficou não chega
    para afastar o frio de quatro paredes.
    Gastámos tudo menos o silêncio.
    Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
    gastámos as mãos à força de as apertarmos,
    gastámos o relógio e as pedras das esquinas
    em esperas inúteis.

    Meto as mãos nas algibeiras
    e não encontro nada.
    Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
    Era como se todas as coisas fossem minhas:
    quanto mais te dava mais tinha para te dar.

    Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
    E eu acreditava!
    Acreditava,
    porque ao teu lado
    todas as coisas eram possíveis.
    Mas isso era no tempo dos segredos,
    no tempo em que o teu corpo era um aquário,
    no tempo em que os teus olhos
    eram peixes verdes.
    Hoje são apenas os teus olhos.
    É pouco, mas é verdade,
    uns olhos como todos os outros.

    Já gastámos as palavras.
    Quando agora digo: meu amor...
    já não se passa absolutamente nada.

    E, no entanto, antes das palavras gastas,
    tenho a certeza
    de que todas as coisas estremeciam
    só de murmurar o teu nome
    no silêncio do meu coração.

    Não temos nada que dar.
    Dentro de ti
    Não há nada que me peça água.
    O passado é inútil como um trapo.
    E já te disse: as palavras estão gastas.

    Adeus.

    ResponderEliminar